
Quando será o natal?
Lá nos mais recônditos escaninhos da minha feliz, questionadora e distante infância, eu estava separado de meus irmãos, de mama, do meu nicho; ela no hospital, situação exasperadora. Doença que hoje parece trivial, à época, correspondia à SIDA, em morbidade e em preconceito. Ninguém se lhe aproximava. Mera estatística, minha mãe; no seio da família, lá na fazenda do meu avô, por quaisquer motivos, assunto prevento. Estávamos todos juntos, os netos. Fieira de gente, verdadeiro arco-íris de fenótipos, risos, birras. Uma algazarra que só crianças entendem e apreciam, normalmente.
Maria Socorro, segunda esposa de meu avô, cujo tratamento aos netos, enteados e agregados não permitia a um olhar detectar qualquer diferença de tratamento perante qualquer criança, não nos deixava faltar nada. Era o zelo de uma guardiã. Era nossa mãe postiça e que não deixava que a vida nos fosse “madrasta“.
Era quem nos preparava amiúdes trouxinhas de víveres para nós, os cinco da casa de mama Ivone. Tais trouxinhas de itens básicos eram nossa subsistência, pois mama não tinha condição de trabalhar, ainda, sobrevivente das estatísticas nosocômicas, e era terminantemente proibido fornecer qualquer amparo à minha família núcleo. Misto de moralismo, crueldade e outros sentimentos menores e que, se se sobre eles discorrera, tiraria o sentido da crônica ora.
Mesmo com a convalescença, contra todos os prognósticos, de mama, e sua vinda para uma casa, vivendo espartanamente, junto meus irmãos, fôramos mais mais uma vez separados. Meu avô não permitia que eu vivesse naquele ambiente sofrido, para ele, lúgubre; eu era uma espécie de “eleito”. Meu destino, mais uma vez, a Casa Grande. Meu lugar era junto a toda a pujança. Fartura. Assim se fez. Crianças obedecem ou obedecem…
A noite de natal, na fazenda, era especial por demais. Com uma particularidade: a opulência de alimentos, a verdadeira cornucópia dava lugar a “luxos“. Esqueçam-se os queijos, as aves, o feijão verdinho. Nosso quitute era pão, comum, tipo bisnaga, avis rara por lá, e, pasme-se, refrescos artificiais e refrigerantes. Para a molecada, um banquete.
Quando a grande noite chegou, estávamos reunidos, fez-se a oração ofertória e passamos a deglutir as novidades. Uma algazarra.
Maria Socorro, com voz de fada, entoava e liderava os cânticos. Uma velha vitrola a pilhas dava o mote. Não poderia, claro, faltar o “Noite Feliz”. Ela tirava de peito; voz linda, maviosa. A mãe postiça também se transmutava em colibri. Era versátil. Ah, isso lá o era!
Aquilo tudo me espicaçava. Eu sequer tinha alçado as operações formais, mas, mercê de minha precocidade, com relação a alguns aspectos da vida, já sofria de questionamentos que me perseguem desde então. Ensimesmado, perguntava por que minha mãe e meus irmãos estavam ausentes, o porquê de não usufruírem das benesses. O quê haveriam eles feito, a ponto de serem excluídos? Aquilo me massacrava…
O tempo, frio e lógico, desmontou a voz de Maria Socorro, emudeceu-a. Peremptoriamente. Não se ouvem mais os cânticos, nunca mais pude ouvir sua doce voz a me chamar de “meu filho”, como o fazia, sempre.
E os natais se tornaram opacos e anódinos, para mim. Passar a ver a exclusão de outros entes humanos foi decorrência, fria e inexpugnável. Hoje, que Nicolaus não mais desce a chaminé (e como ele é seletivo!), o período representa o respeito que procuro nutrir pela crença do outro. Nada mais.
É a distopia do bom velhinho. Não. Refiro-me ao natal. Por essa e tantas outras perguntas recorrentes, o “Natal Sem Fome” me traz tanta tristeza. Por entender, também, que os outros dias do ano poderiam ser natal, ops., sem fome.
Choro por aqueles que nunca terão um natal. E mais pelos que nunca ouvirão cânticos nem arpejos natalinos. Mas emboto a visão muito mais pelos que sentirão falta de víveres. Estes, como diz antiga música, talvez nem liguem tanto assim para um natal. Talvez se lhes bastasse um pedaço de pão e um olhar fraterno.
Natais interrompidos, vidas idem. Hoje, me refrigero na lembrança dela, minha segunda mãe e sua voz acalentadora. E estou certo, a la Saramago, que ela viverá enquanto o último de nós a relembrar; natais grises. Natais e reminiscências.
Lembrei me muito da casa de Minha avo q tbm era a segunda esposa é fazia de tudo para manter a alegria em nossos rostos. Ela contava estórias que nos prendiam dm sua narrativa mais do que a muitos filmes de terror. Eram os melhores natais é as melhores férias sempre, o que nos fazia esquecer todas as adversidades é apenas sonhar. Amei o texto.
Boa tarde; obrigado, Francisca Carvalho. Importante frisar essa parte, lindíssima, de nossas infâncias, pois, mesmo com todo sofrimento, para alguns, havia muita aura de carinho.