Era década de ´70, século passado, meados.
Minha mãe e algumas mulheres da comunidade debulhavam e selecionavam feijões. Naquele tempo, mercê da vida que levávamos, não havia, ainda, pelo menos para nós, que vivíamos do pouco que produzíamos, como comprar víveres, mormente selecionados, como d´ora. Plantações de subsistência, às vezes, algumas criações, como porcos, galinhas, etc. Era cidade, Bairro do Cruzeiro, Itapipoca, mas a nossa economia era campesina, de certo modo.
Ouvi várias vezes minha mãe e outras “comadres” da comunidade discutirem sobre como seria o fim do mundo. A televisão e o rádio haviam “determinado” que, naquele dia, ninguém saísse de casa. Haveria um eclipse e poderia ser o fim do mundo, literalmente. Ou seja, o eclipse se daria. O seu desdobramento, o qual poderia se revelar apocalíptico, é que ninguém saberia determinar.
Enfrentávamos bastante escassez, como qualquer família pobre brasileira, apesar do ufanismo dos meios de comunicação, para quem o Brasil era um oásis. Não para quem era pobre e vivia aquele inferno. Filhos sustentados por uma mãe que fazia as vezes de dona de casa, empregada pública, em uma escola fundamental do bairro, e, como qualquer mulher sozinha, largada pelo marido, com uma penca de filhos (quatro!), o provedor, o arrimo da casa.
Não havia animais a abater, não havia ovos a coletar, nada. Se não déssemos um jeito, o feijão e o arroz ficariam sem a “intera“, sem o complemento.
Conseguimos, com muito custo, com muita discussão, convencer nossa mãe a sairmos para pescar. Afinal, se fosse um dia de escola, lá ninguém estaria mesmo. Todos aceitaram, de modo ou de outro, o toque de recolher. Além de irmos pescar, para não ter que ficar escutando aquela matraca de argumentos sobre o aludido Armageddon, traríamos o complemento da refeição.
Ante a argumentação ultra-protetora de minha mãe, contrapus:
— Mãe, se o mundo se acabar, mesmo, gostaria de morrer de estômago cheio
. Decidido.
Meu irmão mais velho saiu a pegar os peixes, comigo.
Caminhamos até o local da pescaria. Levávamos, como era bem comum, um pouco de farinha e rapadura. Uma espécie de desjejum, para o caso de não se pegar nada. Meu irmão me perguntou, amiúde, se eu acreditava naquilo tudo. Disse que não. De fato, não. Talvez por pura intuição ou talvez por já trazer a marca de não crer em bruxaria e similares ou em qualquer coisa sem fundamentação científica.
Meu irmão me perguntou:
— Mano, se o mundo se acabar enquanto estivermos pescando?
.
No que respondi:
— Qual a diferença entre morrer em casa ou no açude? Tem como saber? Na verdade, nem notaremos, se acontecer.
.
O dia passava, conseguíamos alguns peixes. Por volta de 11:00´ paramos para fazer uma refeição, com a farinha e os pedaços de rapadura que leváramos no alforje.
Continuamos a pescar. Pegamos bastante peixe. Acarás, traíras, piaus, etc. Uma pescaria proveitosa, sem dúvida.
Durante todo este tempo, no açude, observávamos o sol. Se haveria um comportamento diferente; se ele se esconderia mais do que o normal para o Nordeste, quase todo insolado, com poucos momentos de encobrimento dele. Nada. Sol a pino. Estávamos pescando sentados em uma árvore, cada qual; proteção contra o sol e menos desgaste.
Voltamos para casa com o produzido na nossa pescaria. Já era fim de tarde, uma bela e ensolarada tarde. Ao chegar em casa, muita alegria. Estávamos todos vivos, apesar das previsões, e o melhor, com provisões. Tínhamos como iniciar um novo dia, em todos os sentidos.
O tempo passou, conseguimos melhorar de vida, com muita luta de nossa mãe e com estudo, claro. Sem nosso processo de instrução, tão tenazmente perseguido pela nossa mãe, jamais teríamos conseguido ascender socialmente. As condições eram muito adversas e qualquer processo de mobilidade social só mesmo via estudos.
Sair do bairro do Cruzeiro, distando uns seis quilômetros até chegar ao colégio, no centro da cidade, era difícil, mas não estudar não era opção. Nunca o foi.
Eu nunca consegui esquecer aquele dia. Nem muito menos situá-lo. Se foi um “toque de recolher”, para suprimir algum movimento político, afinal, naquele tempo, como hoje, se vivia um período muito conturbado, ou se foi uma pegadinha infame e todo mundo acreditou, pelo menos onde eu vivia. Sei lá. Decididamente, não sei.
Só sei que ainda hoje experimento a sensação de uma noite dentro da duradoura e longínqua noite.
A sensação de que esta noite é recidiva. Recursiva, eterna. os dias atuais parecem corroborar isso. Era dia. Mas o país se encontrava dentro de uma noite sem vislumbre, como hoje.
Gostaria de saber se um dia o sol brilhará, como brilhou, intensamente naquele dia. Mas não aquele, e sim o de um país onde os meios de comunicação não sirvam para lutar contra o próprio país e, sob o regime do medo, exercer este controle de antes e de ora.
Teremos, algum dia, este alvorecer?