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Invasores De Corpos, 1956 — Alienígenas, Nós?

Continuando nossa saga pelas análises, ousando ir além da ríspida sinopse, de alguns clássicos do cinema, sempre traçando um paralelo entre o contexto da época e o atual. Já fizéramos perscrutação de A Montanha dos Sete Abutres, Doze Homens E Uma Sentença, O Tambor, etc; chegou a vez de Invasores de Corpos, (Invasion of the Body Snatchers (Br: Vampiros de Almas ou Vampiros da Noite, Pt: A Terra Em Perigo) o original, de 1956, por Don Spiegel, baseado no livro homônimo de Jack Finney.
Só a título de informação, este obscuro filme B, transformado em “Cult” muito mais pelas polêmicas envolvidas, teve três refilmagens, todas bastante fieis ao livro, exceto o último, de 2007 (Invasores de Corpos, 1978; idem, 1993; e A Invasão, 2007).

Do enredo

Ao chegar à fictícia pequena cidade de Santa Mira, o dr. Miles Bennel reencontra sua antiga namorada, Becky Driscoll, ambos enfrentando problemas conjugais semelhantes, mas, mesmo dada a feição revivida por ambos, eles não dispõem de muito tempo para romance, pois logo ao chegar, dr. Miles atende a vários casos de pessoas com alegação que remete a histeria coletiva, alucinações e até mesmo à Sindrome de Capgras.

A cidade típica estadunidense é, aos poucos, invadida por seres de outro planeta, os quais têm uma forma de vagem, leguminosa gigante, até mesmo de pupa, um casulo, que seja. Tais vagens, após o processo de maturação, dão origem a cópias perfeitas dos humanos substituídos, sendo estas, porém, desprovidas de qualquer sinal de emotividade, senciência, empatia, enfim, desprovidos de qualquer traço de emoção, substituindo os moradores aos poucos e instalando um clima de aparente histeria em massa, como se já falou. Dr. Miles começa a ver que há algo além da histeria coletiva, pois Driscoll alega que sua prima, Wilma, tem os mesmos sintomas da turba, não reconhecendo seus familiares. Tem o caso do guri, logo no início, fugindo dos próprios pais e alegando que não são eles, são cópias fieis.
Além do mais, algo estranho acontece com os alegantes de estranheza dos familiares: eles começam a desmarcar as consultas, dizendo que foi engano.

As substituições vão se dando uma a uma, até só restarem os dois personagens centrais, e, na fuga desenfreada para fugir dos seres sem emoção, ou povo vagem, como seriam chamados, a seguir , Miles e Driscoll se deparam com caminhões transportando centenas de novos invasores, ainda, claro, em forma embriônica. Acionam as autoridades (o FBI. Começa aqui a teoria do enviesamento?). No final do filme, entre os carros em movimento na estrada, Miles corre, gritando ensandecido: eles estão invadindo, estão chegando, e vocês serão os próximos!.

Do Enviesamento Político do Filme

Para se antever, no filme, algum enviesamento, mister que se lembre de que o ambiente corresponde ao auge do macarthismo. Hollywood não ficaria fora, jamais, do crivo “democrata” do período (Eliah Kazan, Don Siegel, Charles Chaplin e outros sofreram as agruras de viver, até a própria morte, sendo acusados de propaganda ideológica e de alcaguetagem ou de sofrer toda a sorte de perseguições de então).
É fato que estávamos em plena era de caça às bruxas. Hollywood, fábricas, partidos políticos, escolas (sem partido?), nada, nada mesmo, escapava do macarthismo.
Mas, pondere-se, foi nesta época o “boom” de filmes de suspense, de terror, ficção científica e dramas. Foi uma década rica.

Muitos críticos, à época, viram forte enviesamento político-ideológico no filme, até mesmo por os figurões da indústria de cinema terem “adocicado” o final, colocando, a despeito do original, de Finney, um final menos distópico.

Siegel, em mais um instamento a falar sobre as conotações do filme, intencionais ou não, não as negou, mas pontuou que não era algo específico, e sim uma crítica à crescente falta de sensibilidade das pessoas para as artes, tristeza, dor, e que a menção ao Senador McCarthy e ao seu inclemente regime de caça às bruxas, perseguição política, no caso, seriam inevitáveis, mas, mesmo assim, o filme não a enfatiza, buscando, de modo sutil, subliminar, discutir o crescente ‘vegatatismo’ humano, ou seja, as pessoas estavam, aos poucos, se assemelhando com os esporos do filme. Em suas palavras, o filme não assumia, mesmo criticando visões de mundo, uma visão professoral.

De um modo ou de outro, o filme remete ao macarthismo, sim, às vezes sutilmente às vezes nem tanto. A posição que ele toma depende mais do ponto de vista do próprio expectador, pois o filme, com pouco orçamento para efeitos especiais, enfatizou, claro, o discurso, o clima claustrofóbico, o terror.
O filme de Siegel pode ser lido de uma forma mais clássica, mas também o pode como uma crítica bastante atual ao modus vivendi da juventude.
Quem nunca assistiu à cena ao ar livre de uma mesa repleta de adolescentes, nenhum conhecendo ou interagindo com o outro, ensimesmados com o seu “smartphone“, praticando prestidigitação, digo, conversa, “chat“?
O individualismo, o culto ao efêmero, o apego doentio às redes sociais, o desprezo à privacidade (deles e dos outros); Don Siegel atual?

Atualidade de Don, Vampiros…

Hoje, não poder sair às ruas trajando vermelho, aqui e algures, sem ser hostilizado por imbecis, vegetais controlados pela mídia, [m|v]idiotas, o culto ao fascismo, o “comunismo” detectado na bandeira nipônica, o direito do inimigo, onde qualquer decisão que prejudique aqueles apontados pelo poder midiático como tais, valem, não importa se juridicamente aceitável ou não, tudo isso provoca uma pergunta inelutável: Don Siegel, Vampiros de Almas, atuais?
E a Escola Sem Partido? Esta aberração, este terato inventado pelos senhores da guerra, para garantir a próxima geração de esporos? Virão eles, já com implantes, ou precisarão adquirir novos “smartphones“?
E você, viu o filme; se não, vai vê-lo? O que pensa de tudo isso?

1 Piada pronta? Se eles não queriam, sob qualquer pretexto, ser acusados de viés ideológico, porque um ator justo com o nome McCarthy?
2 Kevin volta a atuar na versão de 1978, não protagonizando.
3 Uma fala dos alienígenas, em sua raça, todos são iguais, pode ser menção ao modo de produção socialista ou até ao comunismo; não esqueça o clima de “Guerra Fria” de então. Mas, com um pouco mais de busca, também posso atribuir esta frase aos Borgs (Jornadas Nas Estrelas, A Nova Geração);
4 Uma das imagens promocionais do filme (Acesse-a clicando na primeira imagem do artigo; abre em outra Janela) torna impossível não evocar “Os Pássaros“, de Hitchcock, cujos enredo, fotografia, sugestão de invasão ideológica e clima claustrofóbico são bem similares.

Invasores de Corpos (ttc Vampiros de Almas), 1956 (IMDB).
Data de lançamento: Fevereiro 5, 1956 (Duração 1h 20min), Eua
Direção: Don Siegel
Elenco: Kevin McCarthy, Dana Wynter, Larry Gates
Gêneros: Terror, Ficção científica

Doze Homens E Uma Sentença, 1957

JulgamentoDoze Homens E Uma Sentença (Twelve Angry Men, USA; Doze Homens em Fúria, Portugal) é um drama sociológico-jurídico estadunidense profundo, típico desta época, quando o cinema arrecadava muito, mas não perdia a deixa de uma discussão profícua. Doze Homens vem nesta torrente. Começou como uma série, migrou para o teatro e, uma vez comprovado o sucesso, fez estrambótico retorno na telona, dirigido por Sydney Lumet e coproduzido por Henry Fonda, protagonista do épico, e Reginald Rose.
É um filme bastante estanque, mesmo que, acredite-se, não fosse este o intuito, não só pela finalidade escamoteada num tema simples, a priori, mas porque o autor estava mais, acredite-se, preocupado em extrair do que em inculcar.

Todo o filme (98%) do filme se passa na Sala do Juri, o que reforça o senso claustrofóbico e e evidencia as idiossincrasias dos jurados, cada qual com seu drama e seus filtros sociais. Misógino³, se se considerar que não há mulheres a não ser nos créditos da película. Os jurados são doze homens, mesmo que a lei não faça distinção de gênero. Apenas a Lei, em alguns Estados, constranja o resultado a uma decisão unânime para Culpado ou para Inocente, tendo ainda, nalguns Estados, a dissolução do júri, caso não se chegue ao consenso, e noutros a absolvição do réu.

Da trama:
Um jovem porto-riquenho é acusado de ter matado o próprio pai, indo a julgamento. Doze jurados são reunidos para decidir a sentença, com a orientação de que o réu não deve ser considerado culpado ou inocente a menos que haja decisão unânime e deve ser considerado inocente até onde não possa haver convicção de sua culpa. Onze dos jurados, após as explicações iniciais, do processo, votam pela condenação. Os diálogos e argumentações dentre eles demonstram muito claramente o peso social das suas crenças, com alguns evidenciando claramente o preconceito e a xenofobia contra o jovem. O jurado número 8, o sr. Davis, é o único que duvida da culpa do jovem e, enquanto tenta convencer os outros a repensarem a sentença, traços de personalidade de cada um dos jurados vão sendo revelados.
É remarcável a pressão dos outros jurados sobre o personagem Mr. Davis (Henry Fonda), o único a querer mais informações para poder formar sua convicção¹.
Aqui já é possível ao espectador mais atento observar como os princípios basilares do Direito estão ou deveriam estar presentes em todas as fases do Processo, como o “In Dubio Pro Reo“, ou “qual o custo social, jurídico maior: condenar um inocente ou absolver um culpado?“.
Capa do Original 12 Men
Alguns jurados vão, aos poucos, ponderar as dúvidas de Mr. Davis e vão, paulatinamente, dando margem a uma discussão rica. No início, vê-se claramente que a maioria votou só para se livrar da tarefa ou para não ter problemas de qualquer sorte, acompanhando a maioria. Efeito manada.

Não se sabe se foi intenção de Lumet, mas o filme traça um paralelo muito interessante com O Senhor das Moscas, ao conseguir retratar a sociedade dentro de um microcosmos (os jurados são escolhidos dentre “iguais”, comuns, e, por conseguinte, representam o pensamento mediano de determinada coletividade). O justo, o vingativo, o profissional que não consegue se desvencilhar dos seus hábitos laborais, o religioso, o paressadinho, quer mais é sair dali, não importa o que aconteça (com os outros), etc.
O final é surpreendente, pois mostra, além do triunfalismo do Sistema de Júri Popular, tão comum a este tipo de película, que a decisão, para qual seja o resultado, precisa ser unânime (novamente invoque-se aqui o princípio do custo da condenação injusta).

É um filme profundo, reitero. Fruto de uma época de ouro da telona. Grandes questões sendo discutidas e o diretor sempre colocando uma pitada de dúvida e de questionamentos sobre cada aspecto do tema. Vale a pena assistir, do ponto de vista filosófico, seja o audiente um estudioso das áreas afetas, principalmente do Direito, ou não.
No caso do Direito, vale a pena se debruçar sobre a questão da formação da convicção nos dois sistemas penais, brasileiro e estadunidense. No nosso caso, por exemplo, o Júri é formado por sete (7) jurados, com critérios parecidos com os de lá, em termos de recrutamento, mas, por ser número ímpar, depreende-se que se busca a maioria. Bom ponto de discussão.
Outro ponto de discussão: Mr. Davis (Henry Fonda) está, em todo o filme, buscando a verdade. Ele deixa muito claro que não se trata de absolver um culpado ou de simplesmente “mandar um latino para a linha de execução”, mas, enquanto não houver a convicção, não se pode simplesmente votar “Culpado” ou “Inocente”.
Outros jurados deixam, aos poucos, a ideia de que não estão buscando a verdade, e sim se livrar desta faina e voltar à sua faina ou ao seu jogo.
Outros mostram toda a carga de preconceitos, já tendo formado sua “convicção” pelas etnia e origem do garoto.

Até que ponto o nosso Direito é capaz de evitar estes pré-julgamentos, de evitar o “direito do inimigo”, principalmente agora, que atravessamos um período de insegurança jurídica inédito, em toda a história do Direito brasileiro? Temos mecanismos para permitir uma decisão isenta, sem o “lawfare“?
Se não, o que podemos fazer para tornar nosso Ordenamento Jurídico menos propenso aos humores dos que “fazem” o Direito? Teremos um dia um Ordenamento Jurídico para chamar de nosso?

A ver, com certeza. Um grande filme.²

DOZE homens e uma sentença (12 angry men) IMDB. Direção: Sidney Lumet. Produção: Henry Fonda e Reginald Rose. Roteiro: Reginald Rose. Intérpretes: Henry Fonda; Lee J. Cobb, Ed Begley; Jack Klugman, etc. EUA: Orion-Nova, 1957. 1 CD (96 min), DVD, son, color. ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA. Constituição Federal. Filadélfia: Senado Federal, 1787.
¹ Sem lâminas de PowerPoint…
² A versão de 1997 vai ser exibida na TV por Assinatura, no início de Novembro. Vale uma olhadela, até porque o roteiro é bem fiel e o elenco é igualmente ótimo.
³ A versão de 1997 traz um Corpo de Jurados mais pluralista, mais representativo, etnicamente falando, porém ainda misógino, pois continua exclusivamente formado por homens. Reginald Rose fez um comentário jocoso, porém insuficiente para explicar (ele disse que, caso colocasse mulheres no Júri, haveria de mexer no título).

Caras e Caretas, Série (1982-1989). O que transmitir ou não às novas gerações?

caras-e-caretas_serie_1982-1989

Publicado originalmente no Cinema É A Minha Praia, ao qual agradecemos enorme e novamente pela gentileza.

Nestes tempos aziagos de “Escola Sem Partido“¹, golpes institucionais e outras ideias ‘jeniais‘, além de uma mesmice estarrecedora das SitComs, das Soap Operas, etc., numa revisita quase mandatória à década de 80 do Século XX, a sua explosão de comédias de situação e o começo da distensão “lenta e gradual”, como preconizavam os donos do mundo, entre as potências que alimentavam a fogueira da Guerra Fria. Deste caldeirão ultra efervescente se sobressai a SitFamily Ties“², nominada, no Brasil e em Portugal, respectivamente “Caras & Caretas” e “Quem Vem Aos Seus“, neste segundo estranho título temos, claramente, uma ironia, pois parece degenerar, e muito.

O Enredo

Steven (Michael Gross) e Elyse Keaton (Meredith Baxter) são dois hippies classe média típicos, economicamente falando, ultra liberais nos costumes e que se casaram havia duas décadas.

Um tanto quanto nonsense, no tocante à educação dos filhos, eles creem piamente que os filhos os seguiriam em seus valores, teriam uma vida “zen” e seriam filosoficamente parecidos com estes.

O tempo lhes mostrou o quão errados estavam, mormente no tocante ao filho mais velho, Alex (Michael J. Fox). Este, um executivo, na cabeça e nos valores (um admirador incorrigível de Ronald Reagan!). Isso mesmo. Reagan. Importante para nos ambientarmos. Reagan, Tatcher e a ideia do Estado mínimo, do tamanho de uma bacia, nas palavras dos próprios. Este é o ambiente da série. Alex utilizava chavões dos republicanos e portava até mesmo um cartão de sócio do clube dos conservadores. Inteligente, ganancioso, reacionário. uma cópia (carbono) exata de seus pais. Alex se encaixa perfeitamente no estereótipo do “self-made man”, tão usual, à época e hoje.

Já a moça, Mallory (Justine Bateman), ao contrário, relaxada, preguiçosa, fútil e cujo círculo de interesse consistia em compras, rapazes e… compras e rapazes.

Vem, a seguir, Jennifer (Tina Yothers), a caçula. Todo o seu sonho era ser uma pessoa normal. Dependendo da situação, razoável, não?

Family_Ties_castA série, malgrado de forma às vezes sutil, até demais, teve a virtude de discutir preconceitos, censura, gravidez adolescente, vício (drogas), relacionamento familiar e círculos criados em torno de interesses similares. Todos os personagens da série, inclusive os papeis satélite, contribuem para uma discussão sutil e ao mesmo tempo rica sobre os valores de então.

O sucesso estrondoso da Sit tem a ver com isso. quem sabe, além do fato de ter sido a propulsora e impulsionadora de celebridades precoces, como o Micheal J. Fox.

Mas a discussão subjacente da comédia de sucesso parece ser a questão educacional (não somente educativa, educacional, de finalidade da formação). Até que ponto a formação dos nossos filhos, de uma geração, por exemplo, pode ser vilipendiada, a ponto de achar que as coisas se repetirão por osmose. Que não precisaremos assumir uma posição mais protagonista, com relação ao tipo de pessoa humana que queremos formar, subvertendo, se necessário, os valores vigentes e até a educação formal, via escola. A ‘Escola Sem Partido‘, esta aberração imposta pelos nossos nefandos “amigos” ideólogos, daqui e d´alhures, por exemplo, é uma mostra de protagonismo às avessas, ou seja, não seja inocente de pensar que existe neutralidade em qualquer aspecto da vida. Tal movimento aposta na interdição do debate natural na escola, na vida, para a nova geração de zangões…

Séries como Family Ties e “Todo Mundo Odeia o Chris” são muito eficazes em, sob o pretexto de discutir amenidades, ir bem fundo nos costumes e preconceitos e acabam, neste roldão, se tornando fotografia de uma época. Family Ties parece bem atual, traçando um paralelo com o momento em que assistimos ao desmonte de vários Estados nacionais. Esta já é uma boa razão para assisti-la, como análise comparativa. Além dos canais da tevê paga, que vez por outra a reprisa, geralmente com o título original, além de poder vê-la nos sítios dos Estúdios originais ou nos canais de “stream“.

Série: Caras e Caretas (1982-1989)

Ficha Técnica: na página no IMDb.

¹ Uma ideia tão imbecil para se acreditar ter saído da cabeça de educadores. Felizmente, não!.
² No Brasil, curiosamente, uma novela, tempos após, recebeu o nome literal da comédia de situação: Laços de Família.

A Montanha Dos Sete Abutres — 1951 — A Tragédia como Mercadoria da Audiência

Montanha dos Sete Abutres
Publicado originalmente no Cinema É A Minha Praia, a quem agradecemos, novamente, na pessoa da gentilíssima Valéria Miguez.

A Montanha Dos Sete Abutres — Um filme à antiga, literalmente. Não só na ambiência Noir. Do tempo em que não se fazia filme para bilheteria. Filme com mensagem, filme com moral a ser decodificada no transcorrer da trama. Antecipando e até demarcando o Noir, o mestre Billy Wilder nos brinda com um filme denso, soturno (sem fazer qualquer rapapé para com o estilo homônimo francês), gris, antecipatório até, do que se adviria, quando do domínio da imagem sobre a palavra. Outros diretores tentaram, como em O Abutre, discutir a mídia e seu poder sutil e ao mesmo tempo eficaz, massacrante. Síndrome da China, documentário com cara de filme, ou o contrário, tenta também nos mostrar este poder desmedido, aqui, pior, pois mesclado com interesses bélico-midiáticos. Uma mistura explosiva, literalmente. Jane Fonda e Jack Lemon, como sempre, arrasam. Monstros. O mais novo, e nem por por isso menos contundente O Abutre nos mostra aonde vão a ganância e afã de produzir não-notícias e como a manipulação midiática não conhece limites.

a-montanha-dos-sete-abutres_1951_01Voltando ao filme do magistral Wilder, menos não se poderia dizer do assustadoramente talentoso Kirk Douglas. O velho matriarca segura a trama do início ao fim, como só os sagrados do cinema o fazem; no papel do fracassado Chuck Tatum, sujeito muito bom no que faz, mas de temperamento forte, por isso demitido N vezes e tendo aquela que parece ser sua última chance. Tatum, num daqueles platôs do trabalho, onde não se tem o que dizer, vai ao deserto cobrir uma corrida de cascavéis. Leste certo. Não. Não era uma corrida de tatus, tão ao gosto do estadunidense, nem um trocadilho infame com o nome do personagem. Corrida de cascavéis. Isso! Num átimo, a trama muda, pois, ao parar para abastecer, ele e seu parceiro de jornada descobrem a história de Leo Mimosa, tentando encontrar relíquias indígenas, se mete num buraco de uma mina e fica encalacrado. Tatum já tem o “furo”. A oportunidade é esta. Esqueçam as meninas peçonhentas.

a-montanha-dos-sete-abutres_1951_03A partir daí, o filme ganha a musculatura pretendida pela direção e pelos roteiristas. Suspense. Apresentação dos caracteres da cidadela desértica com seus tipos humanos. Em todos os sentidos. Não é mais uma trama sobre cascavéis ou de onde o mais emocionante é uma bola de capim seco a rolar ao sabor dos ventos. Dramas humanos. Os interesses conflitantes vêm à tona; os que querem a liberação do infeliz, que só pode usar as mãos para se comunicar com o mundo à sua volta, e definha, já que não há como obter alimento ou água, a não ser pelo buraco onde, com gestos, ele fala ao mundo, os que não querem de jeito algum a soltura do garimpeiro, o próprio Chuck Tatum, nem Lorraine, esposa do infeliz Leo, pois, caso do Chuck, estamos falando em mídia. Audiência, no caso, é o que importa. Os que estão se lixando e os que querem aproveitar a deixa para sair daquele buraco de cobra, literalmente. Ir para a cidade grande, tentar carreira empreender algo, caso Lorraine, que não almeja nada que não seja sair de perto de Leo e viver a aventura da cidade grande. Cite-se ainda a completa desilusão, com o mundo e com a própria carreira, de Herbie Cookie, “parça” de Chuck Tatum. Aos poucos, seu mundo vai se esgarçando e Chuck já não é mais o seu ídolo.

a-montanha-dos-sete-abutres_1951_04 - Copia (2)Filme discutindo a si mesmo, ou mídia a se questionar, temos aos borbotões. Mas A Montanha Dos Sete Abutres (Ace In The Hole, no idioma original) merece todo o crédito pelo seu caráter premonitório de um tempo em que a mídia assumiria o protagonismo espúrio de ora. Antever isso em ´51 não parece trivial e não o é. O final do filme mostra, no roldão da exibição dos caracteres típicos de uma cidadela, o trágico a permear a vida humana e o quão não temos o timão das nossas atitudes nem o leme do nosso destino. Qualquer paralelo traçado com o modus operandi da mídia contemporânea é inevitável. Retrato vislumbrado e, infelizmente, confirmado. Ao vivo e em ‘cores Noir‘.

Por: Morvan Bliasby.

Jornadas nas Estrelas e o Futuro Imperfeito

Nave Enterprise Original - DivulgaçãoJornadas nas Estrelas, o seriado que encantou, desde a década de 1960, até os dias atuais, toda uma geração de fãs (não, não se refere aos Trekkers; eu disse fãs, sem o ‘nático’.) inovou em tudo, ou quase. Foi a primeira série a apresentar, principalmente para a sociedade estadunidense, reconhecidamente refratária, a possibilidade de coexistência de pessoas, humanas ou não, e até de haver interação e romance entre estas. Foi a primeira vez, por exemplo, que um homem australoide beijou uma mulher afrodescendente, clara e ostensivamente (a tevê estadunidense já havia ensaiado esta ousada cena, com  a desculpa de esbarros, para não irritar os sulistas, reconhecidamente etnicistas) no episódio Plato´s Stepchildren (Enteados de Platão, literalmente) entre o Capitão James T. Kirk e a Tenente Nyota Uhura.

Jornadas inovou em quase tudo, reitere-se. Para início de conversa, deixou Malthus falando sozinho, ao resolver o problema alimentar, pelo menos na Enterprise e onde a Federação aparecesse. Nada que as pesquisas em agrobiologia não já o fizessem, mas os sintetizadores de alimentos da Enterprise resolviam também o problema da limpeza e da reciclagem dos utensílios. O melhor de dois ou mais mundos, não?
Inovou na medicina, na tecnologia em rádio-transmissão (os comunicadores, mesmo os trambolhos da série original, são o protótipo do sistema de codificação do celular de Hedy Lamarr e dos nossos, claro).

Uma das maiores abordagens utópicas de Jornadas talvez venha a ser a possibilidade de haver paz e colaboração entre raças, não restringindo mais o problema da intolerância à espécie humana. Vulcanos, klingons, cardassianos, romulanos, vidianos, ferengui, talaxianos, todos, um a um, acabariam por se filiar à Federação dos Planetas Unidos (uma versão bem abrangente, ecumênica, sincrética, até, da Organização das Nações Unidas — se só há uma raça, aqui, a humana, então, a Federação haveria de comportar as outras espécies inteligentes dos Universos. Um bom recado aos intolerantes humanos contemporâneos). No caso dos vulcanos, malgrado seu passado violento, a aliança com a Federação pareceu mais natural, apesar disto, mas, no caso dos klingons, eles só se aliaram à Federação após ter, em um dos filmes da franquia, seu mundo iminentemente destruído, caso não recorressem à aliança; de qualquer modo, é pouco crível que uma raça beligerante e de hierarquia vertical, os klingons, consiga construir naves espaciais. É uma licença poética da franquia, sem dúvida.
Registre-se o fato de ser a Capitã[o] Janeway a primeira mulher a comandar uma nave. Há mulheres em altos postos na Federação, humanas ou não. Mas só em Jornadas nas Estrelas – Voyager, há uma capitã.

A série e os filmes da franquia pouco a pouco foram deixando ‘recados’ para as suas diversas gerações. Estes falam em tolerância, paz, avidez por descobertas, divulgação, tendo sempre como foco a Primeira Diretriz, que parece ser o mais próximo do conceito da autodeterminação das raças.

Mas há um aspecto na franquia que causa questionamentos: existe um irrecorrível apelo marcial, apesar das mensagens subliminares de paz e de congraçamento entre raças de todos os universos. Há muito símbolos náuticos na série, bem mais do que aquela saudação fúnebre, sempre que um corpo é ejetado da nave, e em toda a franquia, até aqui, mas não se discuta isso. Mais e além.
Para uma franquia que sobrepujou o preconceito étnico, pregou a paz universal, erradicou a cobiça, o dinheiro, o comércio como simplesmente fonte de lucros (a Federação comercia, mas, nota-se, claramente, numa abordagem de intercâmbio cultural, exceto, por eles claro, com os Ferengui), faz alianças com raças extremamente belicosas, como os hyrogens, ou os romulanos, etc., a inexpugnável tutela militar parece incoerente e muito mal explicada. Seria esta a verdadeira distopia conceitual de Jornadas, nosso futuro imperfeito? A Federação não encontrou meios de organização civis, só há a saída pela via militar? Todas as raças elencadas, durante toda a marca Jornadas, parecem ter a tutela militar como forma irrecorrível de organização.

Seria intencional, esta “marciogonia”, seria fruto da inspiração de seus roteiristas, medo de propor temas espinhosos, como a verdadeira democracia, sem protetores e sem salvadores, de propor um “indo além”, no caso, uma sociedade anárquica, autorregulada, por estarem inseridos numa sociedade, como a estadunidense, refratária a qualquer ideia que possa redundar em comunismo, em superação de Governos e de tutores?

São muitas perguntas. Nenhuma resposta, por ora. E o leitor, o que pensa? Param aí, as inovações de Jornadas nas Estrelas? Ou Mad Max, Ellysium e outros distópicos têm razão, o futuro é sombrio, ou seja, só nos resta sermos tutelados ou rebelados? Gostaria de ouvir o que você pensa, sobre isso.

O Tambor (1979). Revisitando os Tempos Coléricos

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Postado originalmente no Cinema É A Minha Praia, da Valeria Miguez, Lella, a quem agradecemos muito pela hospedagem do artigo e pelas dicas de diagramação.

Gunter-GrassNestes tempos de cólera, como diria Garcia Marques, nada melhor do que um filme para pensar, para refletir sobre o ambiente soturno que assola a todos. A recidiva das ‘soluções mágicas’ não é atributo exclusivo dos trópicos. Antes fora! Este filme, O Tambor, (Volker Schlöendorff, 1979 Die Blechtrommel, Tin Tambor, Tambor de Lata, literalmente), baseado na obra de Günter Grass ( 16 October 1927 — 13 April 2015), parte da Trilogia de Danzig (hoje Gdańsk), cidade de nascimento do escritor, cidade esta que, não só por ser onde nasceu e viveu grande parte de sua vida, mas por vir esta a assumir importante papel no desenrolar das duas grandes guerras (a propósito, não esqueça o fato de o Solidariedade ter nascido ali).

O filme, a exemplo da obra magnífica de Grass, percorre toda a epopeia da família de Oskar, começando pela perseguição a seu avô, ainda nos estertores do século anterior, sendo este abrigado (literalmente) embaixo da saia daquela que viria a se tornar sua avó, Anna Bronski, centrando-se na primeira década do século XX, até a década de 30; mostra a ascensão do nazismo em toda a Europa e seus desdobramentos na vida de Oskar Matzerath (se você, por um momento, se lembrou de Amarcord, não estranhe. Há momentos em que as duas obras se parecem entrelaçar, mesmo que o prisma de ambas difira. Felinni fazia uma retrospectiva bem mais intimista e menos engajada, mesmo quando expõe o fascismo dos ´30), um menino aparentemente normal, mas que, em represália aos costumes (ou ao nazi-fascismo) se nega a crescer.

o-tambor_1979_02O filme mostra um Oskar perturbado pela infidelidade de sua mãe, com seu [dela] primo, mas, nas entrelinhas, fica claro o ambiente plúmbeo que grassa sobre toda a cidade de Danzig. A mãe de Oskar, Agnes, engravida, possivelmente de seu primo, Jan. Ela jura que não terá aquele bebê, pois lamenta a gravidez incestuosa (novamente, o expectador fica em dúvida se a razão da rejeição de Agnes não é pela condição política, extremamente desfavorável, pois não há provisões nem segurança para ninguém). Agnes morre. Sua morte se dá de forma nebulosa, confusa. Mesmo no sepultamento, veem-se os movimentos políticos, pró e contra os descendentes de judeus. Neste intercurso, mostram-se aos poucos os primeiros movimentos com vistas a uma resistência. Neste ínterim, Alfred, a quem Oskar odeia, claramente, contrata uma jovem para ser “dona de casa”. Oskar logo se interessa por Maria. Problema é que Alfred também e é ele quem se sucede no relacionamento, chagando a casar com a “housekeeper”, para desespero do pequeno Oskar. A tensão aumenta, é claro. Prestem atenção na cena em que Oskar tenta matar o futuro filho de Maria, com uma tesoura.

Ciúme, remissão ao Ovo da Serpente, ambos? O que me dizem? Igualmente remarcável é a cena em que a Armada russa invade a mercearia de Alfred e este tenta esconder seu “pin” nazista, na boca. Engasga-se, claro. O soldado russo interpreta como agressão e o mata, para felicidade de Oskar. No funeral de Alfred, um evento faz Oskar crescer. Nada diremos, pois é uma análise diacrônica, e não um “spoiler”!

Veja e reveja O Tambor. Vale demais. Pela beleza da obra, bem como para entender aqueles conturbados tempos (e os d´ora, pois).

Günter Grass é tido, na Alemanha, não só por ter sido laureado com Nobel e com várias outras comendas, como o mais importante escritor, depois de Göethe; nada mal para um alemão que nunca se furtou em colocar o dedo na ferida aberta do nazi-fascismo.

O Tambor (Die Blechtrommel. 1979)

Ficha Técnica: na página no IMDb.